sábado, 3 de dezembro de 2011


ALÉM DA LIBERDADE ESTÉTICA
Solano Trindade soube como ninguém retratar de forma simples e lírica as mazelas de um povo explorado, como Zumbi dos Palmares, homenageado no Dia Nacional da Consciência Negra
      Solano Trindade (1908-1974) nasceu no Recife e passou para a história com o epíteto de poeta do povo. Para analisar a sua obra, uma frase dita por ele é fundamental: "Pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte". Ao assumir esta posição, carrega as consequências que sua atitude pode acarretar: o preconceito, a discriminação e a marginalização na literatura brasileira, ocupando posição periférica nesse panorama da estratificação social que se reproduz também dentro da instituição Literatura. Sua produção coincide com o Modernismo no Brasil. Entretanto, nunca foi inserido nesse movimento. Trindade integra um movimento à parte, de escritores marginalizados por setores oficiais, o movimento denominado Literatura negra ou afro-brasileira. Ainda assim, encontramos na sua poesia características modernistas: versos livres, em linguagem coloquial, aparentemente simples. Segundo Oluemi dos Santos, o Modernismo propicia a eclosão da poética negra, exatamente porque nesse momento passa a vigorar "melhores condições para aflorar uma poesia negra no Brasil", a partir de reformulações de valores estéticos que preconizavam uma maior valorização das raízes nacionais. Entretanto, quanto ao mérito, no que tange à inclusão do negro na literatura, Benedita Damasceno, autora do livro "Poesia negra no modernismo brasileiro", observa: "Antes de se atribuir ao Modernismo a maior parcela na reabilitação da cultura negra, é importante lembrar que o movimento teve correntes diversas e até mesmo opostas. Algumas dessas correntes, como o Antropofagismo, nem sequer cogitaram da existência do negro".

LIBERDADE

 
A autora chama atenção para a importância da tendência mineira Leite Criôlo que "quebrou o silêncio em torno do negro dentro do Modernismo". Contudo, é inegável que reformulações dos padrões estéticos nessa época, trouxeram maior liberdade quanto à forma: métrica, ritmos e expressão de seus pensamentos, sentimentos, experiências e também quanto ao tema, incluindo-se aí a temática negra. Solano Trindade, além da liberdade estética, contava ainda romper através da sua escrita, as amarras impostas com a escravização para encontrar o sentido da verdadeira liberdade. Sendo assim, Trindade buscou na figura de Zumbi dos Palmares a inspiração para muitos versos, em poemas antológicos como "Sou negro", "Zumbi", e "Canto dos Palmares". No conjunto da sua obra, "Canto dos Palmares", com 195 versos, se destaca. "Longo e de tom épico, o poema define uma das temáticas mais correntes em Cantares ao meu povo, a identidade negra e seu resgate", como pontua Oluemi dos Santos. No ensaio Zumbi dos Palmares na poesia negra brasileira, Zilá Bernd traça histórico da presença heroica de Zumbi na literatura do país. Desde Castro Alves, passando por Solano Trindade, Abdias do Nascimento, Edimilson de Almeida Pereira e Domício Proença Filho. Entre esses nomes, ela reconhece Trindade como o primeiro a dar "a dimensão épica que o episódio requeria"

LIMITE

Tradicionalmente definida como o gênero literário que narra as grandes ações históricas e feitos heroicos, encontramos em Massaud Moisés uma acepção interessante: "É a poesia em que o poeta se reflete para fora de si, alargando o eu até o limite do nós: na subjetividade do poeta se reflete um povo, uma raça e mesmo toda a humanidade". Ele também aponta para uma mudança quanto à figura do herói no seio do épico com o advento do Romantismo, que começa a transformar estruturas tradicionais. Dessa forma, observa-se a abertura de espaço para o surgimento do não-herói ou anti-herói rói, como vemos em “Canto dos Palmares”, onde ocorre uma inversão de valores, pois não mais seria um épico de reis e rainhas, nos moldes tradicionais, que celebra feitos vitoriosos dos heróis das epopeias grega, romana ou portuguesa, como se observa logo no início do poema:
_ Eu canto aos Palmares sem inveja de Virgílio, de Homero de Camões.
Porque o meu canto é o grito de uma raça em plena luta pela liberdade!
O escritor, ao dar voz a um povo oprimido, se organiza para a conquista do seu direito à liberdade, por uma sociedade mais justa, menos desigual. Assim ele opera um deslocamento onde os citados autores deixam descer parâmetros para sua escrita. Pelo contrário, ao romper com os moldes tradicionais, no lugar de reis e rainhas, Trindade coloca a figura de Zumbi dos Palmares, um ex escravo transformado no poema em herói.

OLHAR
Virgílio, Homero e Camões não são evocados como modelos que devem ter seus ideais colonizadores assimilados pelo escritor negro, mas como referencial que evidencia a alteridade, a diferença do discurso literário negro. A literatura produzida por Solano Trindade se insere na perspectiva de um descentramento do olhas etnográfico.

Assim no épico quilombola, Zumbi, mesmo vencido é transformado em Herói. Cantar o episódio marcante da história dos afro brasileiros é para o poeta tão importante quanto o foi para a tradição ocidental celebrar feitos reais e míticos através da épica clássica e reconta-los noutra perspectiva, num discurso contemporâneo. Assim, Zumbi sobrevive e conclama seus irmãos  a continuarem lutando através dos séculos.
_ Ainda sou poeta
Meu poema levanta os meus irmãos.
Minhas amadas se preparam para a luta,
Os tambores não são mais pacíficos,
Até os Palmares têm amor à liberdade...

Lembremos que Trindade cita Zumbi também no poema “ Sou negro”: “meu avô brigou como um danado nas terras de Zumbi...”. Se em Luiz Gama  - Precursor da poesia negra brasileira – temos um poema intitulado com a pergunta Quem sou eu?, em seu herdeiro direto, Solano Trindade, encontramos a resposta afirmativa da negritude num sonoro “Sou negro”. O que não quer dizer que Gama também não o tenha feito.
Em “Bodarrada” outro título para “quem sou eu?”, o poeta assume o epíteto que lhe foi lançado como desaroso de negro o bode” e o reverte para aqueles que o lançaram.
_Se negro sou, ou sou bode, pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda casta,
Pois que a espécie é  muito vasta...”

IDENTIDADE
Em "Sou negro", Trindade assume sua identidade negra, como nunca antes tinha sido feito por alguém na poesia brasileira, de forma tão plena, desde o título até o fim do poema. Não por acaso, Solano Trindade tornou-se nome obrigatório nas antologias poéticas afro-brasileiras, pelo seu poder simbólico de representação de um discurso negro na literatura. Se no século XX, ele deu continuidade à linha de poesia negra, inaugurada por Caldas Barbosa no século XVIII, e Luis Gama no século XIX, nos anos 70, iniciativas como as dos Cadernos Negros e do Quilombhoje ­ coletivos de poetas negros ­ darão prosseguimento a essa postura, tendo já como referências esses nomes. Por fim, nesta temática do Quilombo dos Palmares na poesia, , podemos mencionar ainda: “poemas sobre Palmares de Oliveira Silveira”, publicado em 1987, “Dionizio esfacelado – Quilombo dos Palmares” (1984), de Domicio Proença Filho e “escalando a Serra da Barriga”, de Abdias do Nascimento.
Estes escritores, em diferentes épocas, são irmanados pelo mesmo espírito rebelde em busca da afirmação de uma identidade negra e da valorização e uma estética afro-brasileira. O movimento dos povos relegados às posições subalternas, ao reivindicar e afirmar suas identidades,  pensamentos e direitos à fala, foi fundamental no processo de revisão histórica.

Fonte: A Gazeta, ES. 19/11/2011




Nenhum comentário:

Postar um comentário