domingo, 1 de abril de 2012

DIREITOS, CIDADANIA DAS MULHERES E EDUCAÇÃO: UM CAMINHO ESPERADO?

As contradições de um Estado patriarcal

Foquemos, em primeiro lugar, este período quase no final da existência da República, a denominada República fraca, assim intitulou um autor o período de 1919 a 1926. Período controverso, com fortes impulsos para a mudança social, e um Estado que parece querer garantir direitos e uma corporização de cidadania de grupos sociais marginalizados ou invisíveis até então. Faz sentido perguntar se as políticas em relação às mulheres foram de inclusão no sentido de uma maior participação, e de uma participação na tomada de decisão que as afetavam.
Como é sabido, o regime republicano afirma, com frequência, a importância de uma educação escolar, sobretudo da instrução, do Portugal pobre e ignorante. E, no entanto, a escola de massas desenvolve-se de forma irregular — no que diz respeito ao crescimento da rede escolar, ao número de matrículas dos alunos/as, às taxas de analfabetismo, aspectos que nos surgem hoje como fortes contradições entre propostas políticas e a sua concretização e implementação.
Ficam visíveis, pois, as discrepâncias entre a retórica de um Estado que afirma a centralidade da «instrução» na construção das suas políticas, e a sua procura em realizar os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade, por um lado, e, por outro, a sua própria atividade irregular e precária no desenvolvimento das formas de escolaridade que ultrapassem as barreiras do patrocinato, das forças de exclusão de uma cidadania para muitas das crianças e jovens que vivem então no país.
Também se tornam visíveis algumas tentativas explícitas por parte deste mesmo Estado de, se não de diminuir, pelo menos de restringir a proporção de mulheres na profissão de ensino, num contexto em que uma percentagem maioritária de professoras é já uma realidade.
Mais do que isso, entre 1919 e 1926, surgem medidas discriminatórias e de segregação, apesar da escola ser dita coeducativa: estabelece-se que as professoras se encarreguem das três primeiras classes e os professores das últimas duas. Estes podem, além disso, ensinar em qualquer ano da escola coeducativa.
Assim, a coberto de uma retórica de procura de um «equilíbrio justo dos sexos» na profissão de ensinar nas escolas, o Estado desenvolve formas discriminatórias e de desvalorização da contribuição das mulheres, mantendo regras de segregação contrárias a um princípio de coeducação e de desvalorização dos saberes das professoras, recorrendo aos estereótipos estafados do «maternalismo», do inatismo nas mulheres, i.e. de condições inatas para tratar as crianças pela sua condição de mães.
Este é também um Estado que assenta a sua retórica política sobre o papel da pessoa que devia exercer as funções de docente em imagens retiradas da esfera pública das atividades masculinas, como a imagem do professor como «missionário da democracia», muito difundida nas intervenções e documentos oficiais. O fato do Estado ter produzido uma tal retórica durante o período republicano, quando eram sobretudo mulheres que entravam no corpo docente e estavam nas escolas locais, rurais, espalhadas no país, levanta algumas questões interessantes. Terá esta sido uma estratégia para lidar com os problemas de legitimação criados por uma força de trabalho predominantemente feminina? Ou constituiu uma tentativa para atrair homens para o ensino primário? Ou permitiu manter inexaminadas concepções e processos que subordinavam as professoras por serem mulheres? Ou…
No contexto onde se faziam sentir as pressões sobre o Estado para assegurar um contexto político mais seguro para a acumulação capitalista (constantemente colocada em risco pelas revoltas monárquicas, uma elevada taxa de mudanças de governos, greves de trabalhadores por melhores condições de trabalho, etc.), outros problemas de legitimação surgiam, ao empregar-se um número crescente de professoras. Percepcionadas como membros da força de trabalho «mais baratos» e mais «maleáveis», ofereciam uma resposta funcional a alguns problemas com que o Estado se confrontava no ensino primário. Contudo, também criava outras tensões, pela forma como cerceou a cidadania das mulheres, negando-lhes o direito de voto.
Dado este contexto, as professoras estavam envolvidas numa teia de relações sociais que não lhes dava o mesmo poder que os seus colegas para serem líderes da comunidade rural, como se afirmava no discurso do Estado republicano. A entrada das mulheres na esfera pública, em número crescente, acordou algum temor e hostilidade masculinas.
Esse temor é expresso alguns anos mais tarde, já no período instável da ditadura militar, em vésperas do fortalecimento do Estado Novo, por um artigo publicado num jornal republicano (em 1932), argumentando que as professoras não se adequavam ao ensino por causa «do seu feitio, a sua constituição física, a fragilidade própria do seu sexo, o papel de mãe e mulher». O fato de serem simultaneamente mães e esposas tornavam-nas incapazes de [...] propagar ideias justas, combater vícios, encarreirar melhoramentos materiais, destruir preconceitos, concitar iniciativas, etc.»
Em vez disso, a profissão estava a ser esmagadoramente conduzida por um «aluvião» de professoras que, obviamente, na opinião do articulista, era prejudicial à profissão docente. Influenciados pelas teorias «positivistas», particularmente Comte, muitos republicanos tenderam a ver as mulheres no «estado metafísico», como objetos de manipulação por parte da Igreja Católica, e, por isso, carenciadas de educação e pouco capazes de defenderem uma democracia.
Por Helena Costa Araújo – Professora da Universidade do Porto.

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