Em que medida as dimensões de gênero e
raça são incorporadas ao processo de Orçamento Participativo (OP)? A escassa
participação de negros e a relativa invisibilidade das mulheres foi a resposta
encontrada pela pesquisa de dissertação de mestrado Gênero e Raça no processo
do Orçamento Participativo. O estudo, concluído em 1999, enfoca as políticas
públicas no município de Santo André, São Paulo.
O conceito de gênero, segundo
perspectiva teórica adotada neste estudo, vincula-se estritamente às questões
de raça e classe social. Neste sentido, é importante considerar as questões
raciais ou étnicas como fatores históricos, econômicos e sociais. No entanto,
verifica-se tanto na academia como na sociedade, que o enfoque para classe
social e gênero tem marcos históricos mais legitimados socialmente, o mesmo não
ocorre com as questões raciais ou étnicas.
Tanto análises das experiências de
políticas públicas quanto pesquisas apontam para a necessidade prioritária de
desnaturalizar as desigualdades e transformar em ações efetivas o que
teoricamente está assegurado em lei e nos programas de governo. Nesse sentido,
as políticas com perspectiva de gênero e raça, podem ocorrer a partir da
mudança na prática de planejamento dos projetos, considerando as diferenças,
como base para a construção da igualdade e justiça social.
Partindo dessas referências e do
entendimento de que o conceito de gênero traz uma contribuição para o
tratamento da complexidade das relações entre mulheres e homens, enquanto
"sexo" se refere às diferenças biológicas, gênero se refere às
diferenças construídas socialmente. O estudo de gênero busca desnaturalizar as
relações entre os seres humanos dos dois sexos, mostrando criticamente que
essas são, também, relações de poder, hierarquizadas, em que a mulher ocupa a
posição inferior.
Flashes da realidade
A sistematização das entrevistas com as
22 conselheiras municipais do orçamento busca identificar tendências sobre
olhares, reflexões e avaliações apresentadas, não pretendendo generalizá-las
para todo o conselho ou processo do Orçamento Participativo. Mas são
indicativos para possibilitar outros enfoques ainda não abordados.
Os dados traduzem um tipo de mulher que
garante a sua participação política na maturidade. Metade delas está na faixa
de 41 a 50 anos, embora se registre a chegada de duas novas participantes,
entre 21 e 30. Este movimento, reafirma dados das pesquisas anteriores entre os
conselheiros (97/98 e 98/99). A maioria concentra-se na faixa etária entre 30 e
49 anos, havendo também registros da chegada de mais novos (entre 18 e 29).
Conselheiras casadas e com filhos são
50%. A maioria (91%) tem até três filhos. O índice indica queda da natalidade e
aproxima-se da média nacional de 2,3 filhos por mulher.
A participação política das mulheres
maduras e com filhos expressa a tendência de que as trabalhadoras, em geral,
despertam para a participação política mais tarde. Após a experiência do
casamento, da maternidade e depois que os filhos crescem. Esta perspectiva vai
de encontro ao que é demonstrado por Cristina Bruschini em relação à alteração
de perfil da força feminina de trabalho: "na década de 80, são as mulheres
maduras, casadas, com responsabilidades familiares, aquelas que aumentam sua
participação laboral".
No tocante à identificação racial, 32%
das conselheiras declararam-se negras, indígenas ou pardas. Número que
representa menos da metade das brancas com 68%. Embora não haja formas de
comparação com o conjunto dos conselheiros, podemos inferir que a mesma
tendência prevaleça no Conselho Municipal do Orçamento. Destaca-se também a
identificação de duas mulheres como indígenas, referência pouco mencionada em
nosso país, principalmente na Grande São Paulo. Quatro se disseram pardas e
apenas uma negra. Nenhuma se declarou preta.
A maioria concentra-se em profissões
consideradas femininas. Nenhuma está na área industrial ou de serviços
domésticos. Fato que contradiz as possibilidades do mercado, seja pela
tradicional vocação industrial da região do ABC (embora esta realidade esteja
em transição), seja pelo fato de um alto índice de trabalhadoras serem
empregadas domésticas.
Vale ressaltar ainda a situação das
donas de casa (18%), que pelo imaginário social e também pelas pesquisas
acadêmicas são vistas como "inativas". As mulheres que não trabalham
fora de casa ou não são remuneradas dizem que não trabalham.
Em relação à escolaridade, um alto
índice é de mulheres com nível universitário completo (41%). Na outra ponta,
nenhuma analfabeta ou semianalfabeta. De um lado, verifica-se que este dado não
acompanha a tendência nacional de alto índice de analfabetismo entre mulheres
pobres. De outro, demonstra um nível de médio a alto de escolaridade, tendência
que cresce principalmente entre as mais jovens. Outras 41% possuem nível médio
e baixo poder aquisitivo. No entanto, quando cruzamos educação, profissão e
renda familiar, verificamos que o maior índice de escolaridade entre mulheres
não corresponde a alteração da realidade de formação para o mercado nas
profissões consideradas femininas.
Este perfil define não apenas
características pessoais do conjunto das conselheiras, mas tendências de
participação das mulheres, que podem ser análogas em diversos movimentos e
espaço de atuação política. A presença e participação na vida pública são
feitas com dificuldade. Ainda assim, essas mulheres reafirmam a importância
individual e coletiva da participação, expressando o sonho de mudança e
vislumbrando um mundo em que as diferenças sejam respeitadas. A garantia de uma
cidadania com diversidade, mesmo correndo o risco, com esta afirmação, de
sobrepor conceitos.
Mudar este universo de homogeneidades
inexistentes é um projeto que se torna, dia a dia, mais próximo de ser
repensado, reavaliado e transformado. Em debates entre gestoras públicas
(FES-ILDES, 1999), as discussões sobre estratégias de inclusão de gênero e raça
no OP trazem como proposições: incidir no processo do OP, tanto na dinâmica
junto à sociedade civil quanto aos gestores públicos; a articulação das
mulheres e negros nos vários espaços de participação no município,
estimulando-as para o processo do OP e capacitando-as para uma intervenção mais
qualificada nas plenárias e no Conselho. Destaca-se aí a proposição de
estimular mulheres e negros a candidatarem-se ao cargo de conselheiros. Uma
outra diretriz refere-se à articulação, no âmbito interno da administração,
entre responsáveis pelos programas voltados às mulheres e negros e o grupo
coordenador do orçamento participativo, assim como os demais órgãos
governamentais.
Mudança de cultura
O Orçamento Participativo é um projeto
político que promove uma nova cultura político-administrativa, em contraponto
às práticas autoritárias e clientelistas. Novos papéis passam a ser assumidos
pelo Estado e movimentos sociais. O principal desafio é a alteração da dinâmica
das relações sociais, de modo a atribuir um caráter de justiça social às
perspectivas de desenvolvimento social, pois a simples consideração da
reprodução econômica já não é suficiente para abranger e refletir os problemas
que vivemos, inclusive para entender a própria reprodução do capital (Dowbor,).
Nesse contexto, a priorização de
investimentos e destinos dos recursos públicos deve ocorrer através de
negociação entre poder público e sociedade civil organizada. Para Tarso Genro e
Ubiratan Souza (1997) o OP configura "a democratização da relação do
Estado com a sociedade, [criando-se] uma esfera pública não-estatal" .
Porém, mudanças na forma de governar não apresentam resultados em curto prazo.
Esse processo, segundo Celso Daniel
(1994), impõe dilemas quanto à divisão de poder político, no que diz respeito
ao Conselho do Orçamento Participativo, nem o governo pode impor sua decisão ao
Conselho - o que "deslegitimaria o processo de participação" (p. 35)
- nem o Conselho pode buscar sobrepor-se ao governo legitimamente eleito.
Refletindo sobre as necessárias mediações entre o público e privado, entre
governo e comunidade. Pedro Pontual (1994) percebe um caráter
político-pedagógico nas ações que envolvem diversos atores - ONGs, movimentos
sociais, partidos políticos, intelectuais -, sugerindo "pedagogizar o
conflito".
O orçamento participativo não é a única
forma de participação popular. Sua implantação deve ser paralela à dos demais
instrumentos do poder público prescritos pela nova legislação e dos canais de
participação, como os diversos Conselhos Municipais e outras formas de
organização.
A prática do OP pressupõe consulta e
decisão sobre os destinos do orçamento público. Para tanto é necessária a
priorização de investimentos, que em geral refere-se a questões de
infraestrutura, saneamento, saúde, etc. Este processo, no entanto, está longe
do atendimento total às reivindicações da população nas plenárias, o que gera
muitos conflitos e dificuldades de negociação. Mais remota ainda torna-se a
possibilidade de acolhimento das reivindicações para além das tradicionais. Com
isto, as questões de gênero e raça não têm ressonância para um atendimento
direto.
Fonte:Matilde Ribeiro
Assistente social,
mestre em Psicologia Social pela PUC/SP e assessora de Direitos da Mulher na
Prefeitura de Santo André, SP.
Texto extraído do Boletim Orçamento e Democracia, n.16, Out 2000-Jan 2001
Postado por: Angelita Marchesini Carletti
Texto extraído do Boletim Orçamento e Democracia, n.16, Out 2000-Jan 2001
Postado por: Angelita Marchesini Carletti
Nenhum comentário:
Postar um comentário